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A recuperação depois da austeridade (e os fantasmas no armário)

Los "eurofanes" toman Lisboa a un día del arranque oficial de Eurovisión

Francisco Louça

O autor é Professor de Economia da Universidade de Lisboa. Foi fundador do Bloque de Esquerda e deputado (1999-2013). Hoje ele é membro do Conselho de Estado. —

As eleições europeias são ignoradas pela maior parte da população portuguesa (69% de abstenções). Mas, mesmo com essa limitação, o terço da população que votou confirmou o colapso eleitoral das várias direitas que, desde 2015, têm perdido representatividade: o principal partido da direita, o PSD, ficou pelos 22%, o seu pior resultado de sempre e a 11% do PS, o partido do governo, que ocupa o centro do espectro político. As esquerdas mantêm cerca de 16%, em particular devido à duplicação da votação do Bloco de Esquerda. Assim, estes resultados confirmam um apoio popular maioritário aos acordos estabelecidos há quatro anos entre o PS e os partidos à sua esquerda, a chamada “geringonça”, bem como a recusa do regresso a políticas de austeridade.

Uma surpresa política

Em outubro da 2015, as eleições parlamentares criaram um situação política inédita. A coligação das direitas, que tinha governado nos quatro anos anteriores e aplicado uma dura política de austeridade, conseguiu 38% dos votos, ao passo que o PS obteve 32%. O Presidente de então, Cavaco Silva, ele mesmo um antigo primeiro-ministro e uma figura histórica da direita, encarregou Passos Coelho, que governara desde 2011, de formar um novo governo. Mas uma convergência parlamentar entre o PS e as esquerdas impediu a formação desse governo e deu posse a António Costa, secretário-geral do PS, que formou um governo minoritário suportado por um acordo pactado com as esquerdas. Foi assim que se formou o que veio a ser conhecido como a “geringonça”.

Isto nunca tinha acontecido nos 40 anos da democracia instituída depois da revolução de abril de 1974. Nem o PS tinha jamais aceite um acordo com as esquerdas, nem estas o tinham concebido como possível. Assim, esta solução política foi uma surpresa, talvez por isso acompanhada com curiosidade noutros países, como foi o caso de Espanha. A razão fundamental para esta mudança do modo da política foi a pressão popular sobre os partidos, depois da catástrofe social provocada pelo programa de austeridade entre 2011 e 2015: a maioria do povo não aceitava a continuação de uma regra de sacrifícios, de subida de impostos e de redução de salários e pensões, o que o primeiro-ministro do período designara como a estratégia de “empobrecimento de Portugal”.

Para mais, o efeito desse empobrecimento foi dramático. De 2009, quando se inicia a recessão na sequência da crise financeira internacional, até 2014, um terço da população entra em algum momento em condição de pobreza (32,6%), e uma parte importante durante um ano inteiro (12,6%) - para além dos cerca de 20% que vivem na pobreza. Assim, em 2012, 24,5% dos pobres eram-no pela primeira vez na sua vida. A escala social só funcionou para baixo. Durante a vigência do programa da troika (FMI, Comissão Europeia e BCE), a pobreza instalou-se mesmo entre as famílias com um ou dois salários.

No caso dos jovens, os ganhos médios caíram um terço; para quem detém um título do ensino superior, a perda de rendimento foi de 20%; para os 10% mais pobres, a perda foi de 25%. A crise económica foi agravada pela política de austeridade e ainda pelas medidas discricionárias contra alguns setores de trabalhadores ou da população pobre (400 mil pessoas que recebiam o Rendimento Social de Inserção, uma prestação para desempregados e idosos pobres, foram retiradas da lista de apoios pelo governo das direitas). O desemprego real ultrapassou os 20%. A miséria cresceu.

Dada essa experiência, quando as esquerdas e o PS assinaram acordos para comprometer o novo governo a recusar privatizações, a aumentar o salário mínimo em 20%, a recuperar os salários e pensões, a reduzir o imposto sobre o trabalho, a garantir todos os manuais escolares gratuitos e a baixar o custo do ensino superior, a garantir contratos estáveis para os trabalhadores precários ou as 35 horas no Estado, essas medidas foram vistas como um alívio. Durante os últimos quatro anos, este programa constituiu uma resposta à austeridade com amplo apoio popular.

No entanto, o acordo da geringonça não abrangia nem políticas europeias nem a gestão do sistema financeiro e da banca. Houve mesmo momentos de divergência forte entre os parceiros, quando o governo decidiu a venda do BANIF, um pequeno banco regional, ao Santander, ou quando vendeu um grande banco, o Novo Banco, a um fundo norte-americano, Apollo, em ambos os casos com perdas milionárias para as contas públicas. A divergência é importante, porque exprime visões contrastadas sobre o lugar da finança na vida económica portuguesa, uma questão que tem sido ilustrada por sucessivos casos de fraudes e escândalos. Um apanhado da história deste modelo de poder financeiro permite perceber porque é que a questão é tão essencial. 

Senhor Milhão

Na viragem para o século XX, a figura dominante da finança portuguesa era Henry Burnay, nascido em Lisboa de pais belgas. Fez carreira numa agência financeira, casou com a filha do dono, acumulou fortuna com especulação com dívida pública (comprou por tuta e meia títulos de dívida do pretendente derrotado na guerra civil dos anos anteriores, D. Miguel, e cobrou-os pelo valor nominal) e com negócios coloniais. Investiu em transportes e no Banco Nacional Ultramarino. Do seu palácio da Junqueira dirigiu um império e, quando morreu, era um dos homens mais ricos da Europa.

O caricaturista Bordalo Pinheiro, que retratou esses tempos, desenhou-o como um negociante ambicioso, mas o escritor Fialho de Almeida, mais atrevido, chamou-lhe o “pulgão polimórfico”. A imprensa, respeitadora, deu-lhe a alcunha de “Senhor Milhão”. Mas foi Eça de Queiroz, o maior dos escritores portugueses do início do século, quem dele deixou o retrato mais completo, como o banqueiro Jacob Cohen, “um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, (que) sorria, descalçando as luvas, dizendo, que, segundo os ingleses, havia também a gota de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a ele...”. “Os Maias”, o livro que conta a história, levanta o véu do negócio do banqueiro. Ei-lo num jantar de gala:

“—Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O empréstimo faz-se ou não se faz? 

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquela questão do empréstimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episódio histórico!... O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única ocupação mesmo dos ministérios era esta - cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar... 

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a banca-rota. 

—Num galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor. Nem os próprios ministros da fazenda!... A banca-rota é inevitável: é como quem faz uma soma... 

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o cálice de novo, fincara os cotovelos na mesa para lhe beber melhor as palavras. 

—A banca-rota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela - continuava o Cohen - que seria mesmo fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país...“

Pois o romance ilustra um facto histórico, foi na bancarrota de 1890-2 que Burnay fez o seu melhor contrato. Como intermediário de uma associação de credores que fez o empréstimo a governo sem liquidez, o banqueiro exigiu a contrapartida mais rentável, o monopólio dos tabacos. Durante 25 anos esse monopólio foi o seu tesouro. Como o seu retrato no romance, Burnay sabia como se podia fazer falir o país em pouco tempo e usou a chantagem da dívida. Ficou rico como Midas. O poder do Senhor Milhão era imenso. 

Esse romance é também um retrato da acumulação de capital que fez a história da economia portuguesa. Um século mais tarde, os contratos dos tabacos têm outra forma, são as privatizações de infraestruturas em monopólio, na água, no gás, nos combustíveis, na eletricidade, são as vendas de barragens, as concessões de autoestradas, e muitas outras formas de uma economia de rendas. As novas fortunas são amassadas em operações que garantem privilégios suportados pelo Estado. 

Uma fraude bancária

Recentemente, discutia-se em Portugal o caso do comendador Joe Berardo, um homem que construiu o seu império simplesmente acumulando mil milhões de euros de dívidas à banca. Na falência do maior banco privado, Espírito Santo, descobriram-se tramóias de milhares de milhões de euros, rotas de paraísos fiscais e engenharias artificiosas para ocultar as contas, com benefício de alguns banqueiros.

Noutros casos, é uma casta que se organiza para promover as dívidas ou as transferências de benesses: num estudo que fiz com alguns colegas sobre as carreiras profissionais de todos os governantes desde 1975, constatei que um em cada três ministros ou secretários de Estado ou entrou no governo vindo de um banco ou uma empresa financeira, ou foi para a administração de uma dessas empresas no fim do seu mandato. Com esta porta-giratória, a conexão entre o poder e a finança foi-se estreitando. Este é o fantasma no armário português – e é a razão pela qual os primeiros passos no combate à austeridade exigem um política esforçada de anulação das rendas dos “senhores milhões”.

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